Marco Aurélio Nogueira – Obama em Cuba: o diálogo, a economia e a interação como estratégia
Marco Aurélio Nogueira,
Coordenador científico do Núcleo de Estudos e Análises Internacionais-NEAI, da Universidade Estadual Paulista-UNESP, em São Paulo.
Quando, em agosto de 2015, processou-se a abertura oficial da embaixada dos EUA em Havana, não foram poucos os que se mostraram céticos. Faltaria força política e determinação ao presidente Obama, que teria visto no gesto ama oportunidade para retomar o protagonismo na política interna, por um lado, e na América do Sul, por outro. Particularmente os republicanos, seus adversários encarniçados, não pouparam palavras para estigmatizar a iniciativa, que na visão deles nada mais seria do que uma “capitulação” do presidente, que estaria fazer concessões inadmissíveis aos irmãos Castro, pilotos de uma “ditadura inflexível”, exemplo bem acabado da “loucura do comunismo”.
De lá para cá, alguns fatos importantes se passaram.
Internamente, com o avanço do processo eleitoral, os republicanos ingressaram em nova fase, em que as tradições partidárias ameaçam se estilhaçar, graças ao ímpeto demonstrado por Trump. A agressividade verbal continua a mesma, mas sua eficácia parece ter declinado, em decorrência da falta de unidade do partido e da marginalização de suas alas mais tradicionais e mais qualificadas.
Externamente, completou-se o esgotamento do paradigma da guerra fria. Ainda que EUA e Rússia permaneçam como polos antagônicos no sistema internacional, o mundo ficou muito mais complexo e policêntrico, assim como as políticas de potência perderam espaço em benefício de uma atenção mais dedicada aos temas da integração, do diálogo e da negociação. Na América do Sul em particular, há uma nova dinâmica instalada, bem mais propícia à emergência de forças políticas “pós-bolivarianas”, favoráveis à composição de regimes e governos democráticos mais liberais e democráticos.
O contexto geral, portanto, passou a ficar favorável à retomada de uma política norte-americana mais atenta à região e menos interessada em subordiná-la. Obama busca traduzir politicamente um novo contexto. Suas visitas de agora, à Argentina e sobretudo a Cuba, inserem-se neste quadro.
Há elementos que precisam ser saudados. Um deles tem seguramente a ver com o desmanche da obsessão anticomunista que esteve na origem do embargo comercial à ilha e da ruptura das relações diplomáticas entre Cuba e Estados Unidos em 1961. Este dado da cultura política norte-americana, particularmente da sua vertente conservadora, alimentou um dos maiores equívocos da política externa do país: em vez de minar o regime de Fidel Castro, a decisão acabou por alimentá-lo e por prejudicar o já difícil cotidiano dos cubanos. Com o passar dos anos, o embargo foi se tornando anacrônico, caricato, a exigir urgente revisão. O próprio Obama afirmou que o antagonismo e a hostilidade deixaram de ter sentido porque “não produzem resultados”.
A visita de Obama à ilha será vista pelos cubanos como um passo decisivo para o fim do embargo, que para eles é a conquista principal. Com o bloqueio comercial, a economia cubana permanecerá travada, conspirando contra o ideal socialista do regime. A melhoria das condições materiais dos cubanos, bem como alguma injeção de dólares nos núcleos-chave do regime – a educação e a saúde –, reforçarão o sistema, mas também tenderão a impulsionar a adoção de medidas de ampliação da democracia e da liberdade, processo que ganhará fôlego na medida em que a sociedade cubana se tornar mais plural e diferenciada.
O governo Obama sabe disso e trabalha nesta direção. A abertura diplomática deve caminhar junto com a liberalização económica e a intensificação das trocas comerciais. A ampliação das interações pessoais produzirá efeitos internos que poderão ter impacto sensível na natureza do regime. O centro da estratégia é econômico, uma aposta no valor intrínseco de trocas bilaterais, livre circulação financeira e viagens turísticas. Exemplo disso é que, no ano passado, houve um aumento de 54% de turistas viajando dos Estados Unidos para a ilha.
A doutrina Obama em política externa é do tipo soft power: eventuais mudanças políticas – a democracia, o pluripartidarismo, a liberdade de imprensa – não podem ser impostos nem de fora para dentro, nem pela força. Mudanças de regime, aliás, não são seu foco principal. A crença é de que um novo dinamismo econômico e mais interações podem fazer muito mais por uma democratização à moda norte-americana do que pressões de tipo político ou militar.
A reaproximação deverá se completar pouco a pouco. A agenda é complexa e inclui pontos de difícil equacionamento: direitos humanos, Guantánamo e pedidos de indenização, além da suspensão do embargo. Os discursos oficiais oscilam entre a moderação diplomática, o interesse sincero e a divergência contida. Obama sustenta que o diálogo atual entre os dois países é uma exigência das novas circunstâncias: como a “Guerra Fria terminou há muito tempo”, o diálogo precisa prevalecer sobre as rivalidades.
Ao chegar a Havana no domingo 20 de março, o presidente americano observou que «esta é uma visita histórica, uma oportunidade histórica para ter contato direto com os cubanos e melhorarmos nossa relações. O futuro será mais brilhante que o nosso passado».
Obama já flexibilizou o embargo econômico e comercial à ilha – mas a medida ainda não foi aprovada no Congresso norte-americano, que é o maior obstáculo do presidente. Por isso, uma questão a ser bem avaliada tem a ver com a consolidação do processo de reaproximação, que Obama pretende tornar “irreversível”, levando em conta o fato de que seu mandato termina no final de 2016.
Os dirigentes cubanos não aceitam qualquer intervenção nos assuntos internos de seu país e contrapõem, à exigência norte-americana de respeito aos direitos humanos, uma forte crítica à própria situação interna dos Estados Unidos, referindo-se diretamente à discriminação racial, à violência policial e à influência do poder econômico nas eleições. Exigem, também, a devolução do “território ilegalmente ocupado de Guantánamo”.
Seja como for, a visita oficial de Obama é o mais importante passo para a aceleração do longo processo de normalização das relações entre os dois países.
Considerado de forma ampla, o comunismo cubano não representou infortúnio e desgraça. Garantiu educação, saúde e igualdade aos cubanos. Manteve viva uma utopia. Mas não promoveu o acesso dos cubanos a importantes bens de consumo e os afastou do convívio com o mundo. Contribuiu de algum modo para que Cuba permanecesse parada no tempo. A revolução foi hostil à diversidade, ao pluralismo e à democracia, um preço que está sendo cobrado hoje.
Mas as antigas decisões norte-americanas de 1961, assim como a reiteração delas ao longo dos anos, foram decisivas para que Cuba não saísse do lugar. Em vez de ajudar os cubanos, os EUA contribuíram para prejudicá-los ainda mais.
Obama parece ter percebido claramente isso. Suas decisões de agora são uma forma de autocrítica em relação à política norte-americana para Cuba. A visita à ilha tem forte valor simbólico: é uma demonstração de pragmatismo que reflete uma leitura crítica do estado do mundo. Poderá ter grande impacto tanto no que diz respeito à melhoria das relações entre Cuba e Estados Unidos, quanto para que se complete a plena inserção de Cuba no hemisfério latino-americano.
Combinada com a visita à Argentina, poderá ser importante para que melhorem as relações dos EUA com outros países latino-americanos, como a Venezuela. Para Obama, será a afirmação de um movimento de política externa dedicado a repor o protagonismo norte-americano, oxigenar o mundo e ampliar as chances de uma estabilidade global.
Para os sul-americanos, que hoje se veem às voltas com modificações importantes na correlação de forças no interior de vários de seus países, as visitas de Obama podem auxiliar a que se cristalizem orientações refratárias ao bloqueio, ao isolamento e ao exclusivismo.
Trata-se de uma perspectiva que evidentemente precisará ser provada pelos fatos. Mas não deixa de ser um sinal animador de que bloqueios perversos e discriminatórios ficaram para trás. A hora parece ser muito mais favorável ao diálogo, à diplomacia e à negociação.